A metodologia de estudo duplo-cego é provavelmente a mais importante invenção científica desde o método científico. Sem essa ferramenta intelectual seria muito difícil realizarmos com confiabilidade qualquer teste científico envolvendo seres humanos. O objetivo do teste duplo-cego é evitar qualquer interferência consciente ou não nos resultados de um experimento. Para isso é necessário que o experimento inclua um grupo de controle sobre o qual nada é feito (por exemplo, se se trata do teste de uma droga a esse grupo é ministrado um placebo), mas que os componentes do grupo não saibam o que estão recebendo. Isso constitui um teste simples cego. Para tornar o estudo ainda mais livre de tendências sub-conscientes, nem mesmo o experimentador deve saber qual o resultado esperado da medida que está fazendo. Metodologias duplo-cego são empregadas não apenas na área médica, mas sempre que o resultado de um experimento pode depender da vontade do experimentador. Em particular, estudos duplo cego controlados por placebo são fundamentais para sabermos se uma determinada terapia (ou droga) tem realmente efeito terapêutico ou não. Isso ocorre porque nosso corpo oferece uma resposta bioquímica mensurável à sugestão de tratamento, que é chamada de efeito placebo.
O teste duplo-cego ganhou notoriedade graças ao célebre episódio da memória da água. Em 1988 um grupo de pesquisadores liderado pelo francês Jacques Benveniste submeteu à Nature um artigo em que era demonstrado que glóbulos brancos humanos apresentavam uma resposta bioquímica após expostos a água na qual foi diluido um anticorpo até o ponto em que nenhuma molécula do anticorpo restaria em solução. O efeito só ocorreria quando a solução era violentamente agitada. Qualquer semelhança com alguns dos princípios da homeopatia não é mera coincidência. O objetivo do experimento era fornecer uma base científica à homeopatia, ou seja, mostrar que a água pode ter memória de um soluto mesmo quando esse soluto não mais está nela. Benveniste não oferecia nenhuma explicação para o fenômeno, que no entanto não parecia tão absurdo. A água é um líquido especial, que mesmo a temperatura ambiente contém longas cadeias poliméricas. Seria possível, mas não provável, que as cadeias poliméricas guardassem informação estrutural sobre um soluto que não estava mais nela. Como se tivesse memória dos soluto que passou por ela mas não está mais lá.
John Maddox, o editor da Nature na época era um cientista de mente aberta e achou que o estudo devia ser publicado caso não contivesse erros. Por outro lado, ele temia que um resultado tão surpreendente envolvesse alguma falha de procedimento. O artigo foi publicado apesar dos temores, mas em contrapartida o Dr. Benveniste aceitou repetir o experimento perante uma comissão indicada pela Nature. A comissão era eclética. Além de Maddox foram chamados Walter Stewart, físico do National Institutes of Health norte-americano e James Randi, mágico e desmascarador de fenômenos paranormais, com passagens pelo Brasil. O experimento foi primeiramente repetido com sucesso perante a comissão. No entanto, Maddox notou que os experimentadores sabiam quais os tubos de ensaio continham os anti-corpos e quais não os continham. Um novo experimento, dessa vez com protocolo duplo-cego foi realizado. Agora os experimentadores não mais sabiam quais tubos continham o quê. A tabela de códigos de cada tubo foi embrulhada em papel alumínio e lacrada em um envelope que ficou colado no teto do laboratório (como garantia de que os códigos não seriam adulterados por ninguém). Dessa vez o efeito desapareceu completamente. Numa nova tentativa o lacre do envelope foi violado por alguém do laboratório durante a noite.
Quando há alguns meses recebi um convite para participar como voluntário de um teste duplo-cego eu aceitei imediatamente. Trata-se de um estudo sobre possíveis efeitos do ácido linoléico conjugado (CLA) sobre o teor de gordura corporal em homens na minha faixa etária. É um assunto polêmico, em que indícios se misturam positivos aparecem misturados com ceticismo e mesmo uma proibição da comercialização do produto pela Anvisa. Buscavam-se dois grupos, um de sedentários e um de atletas. Obviamente me inscrevi na segunda categoria, embalado por minhas habituais corridas 3 vezes por semana.
Depois de uma longa entrevista sobre hábitos alimentares e um exame biométrico, complementado por exames de urina e de sangue, recebi o conjunto de potes 533. Nem eu nem a pesquisadora responsável sabemos se as cápsulas dos potes 533 contém o tal ácido ou um placebo. Como solicitado tenho ingerido as cápsulas religiosamente 3 vezes por dia após as refeições. É verdade que uma vez ou outra eu esqueço. Também anoto compulsivamente tudo o que ingiro 3 vezes por semana.
Até agora (já estou ingerindo as cápsulas há mais de um mês) não notei efeito algum. Fico me perguntando se estou recebendo o CLA ou o placebo. As vezes identifico algo que poderia ser um efeito colateral. Ou será minha imaginação? Há 3 semanas eu coloquei uma cápsula no bolso da calça para não carregar a caixa inteira num passeio a pé que incluiria almoço em Cartagena de Índias na Colômbia. Fazia um calor infernal. A cápsula se desmanchou parcialmente no meu bolso e vazou um líquido oleoso com um leve odor de farmácia. Não consigo dizer se era o placebo ou o ácido linoléico conjugado. Ainda bem. Cultura Científica: O Estudo Duplo Cego
10 junho 2009
Estudo Duplo Cego
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