Texto de autoria da doutora Lucy Terezinha Tonietto, Psicóloga com especialização em Psicologia Analítica pela Puc-PR; com mestrado em Ergonomia relacionada à Individuação pela UFSC; doutoranda em Engenharia de Produção e Sistemas na UFSC.
No início da Era Cristã, havia grande diversidade de pensamentos. Nos primórdios, quando não havia Igreja constituída, todos os Evangelhos eram aceitos e nenhum era considerado mais ou menos verdadeiro. Com o passar do tempo, as opiniões foram se firmando cada vez mais, o desentendimento levou a uma cisão mais radical e os evangelhos cristãos foram o instrumento da separação das idéias.
Os Evangelhos foram classificados em:
Canônicos, os que passaram a compor o Novo Testamento;
Pitorescos e romanescos sobre a vida de Jesus, foram deixados de lado e;
Uma terceira categoria dos que foram considerados heréticos, por trazerem idéias muito diferentes das idéias aceitas pelos cristãos ortodoxos. Foram mandados destruir e foram proibidos. Dentre estes, encontra-se a literatura gnóstica.
A palavra heresia, do grego haíresis, hairen significa escolha. O cristianismo deu a essa palavra uma conotação pejorativa de "a doutrina que está fora da Igreja", isto é, contrária aos princípios da fé cristã, aquele que se afasta da verdadeira fé. Herege pode ser qualquer pessoa cuja visão alguém não goste ou denuncie. "No fundo, heresia nada mais é do que divergência de opinião."
As heresias dos primeiros séculos da era cristã se referem a reflexões filosóficas e teológicas em torno de dogmas cristãos, principalmente as que dizem respeito à Ressurreição de Cristo, à Trindade e à natureza humana de divina de Cristo.
Hoje, com base nos textos da Biblioteca de Nag Hammadi e nos textos do Novo Testamento, levanta-se a hipótese de que, junto com o aspecto teológico, o centro de interesse do pensamento da época, havia uma acirrada disputa política, de poder e de dominação.
A Igreja, em torno do ano 220 d.C., criou uma estrutura organizacional dividida em hierarquias bem definidas: bispos padres e diáconos, e passou a ditar as normas da "fé verdadeira". A base desta estrutura hierárquica foram: 1º. as afirmações de que Cristo delegou poderes a Pedro de representá-lo na terra, 2º. que os primeiros a verem Cristo ressuscitado foram os Onze Apóstolos, e 3º. que a ressurreição foi um fato físico, que aconteceu em carne e osso. Todos os pontos de vista que não estivessem de acordo com o dos componentes desta estrutura hierárquica passaram a ser considerados heréticos.
O aval mais significativo para a disputa da Igreja vem do Evangelho de São Mateus que Em Mateus 16:18-19 lê-se: E eu, eu te digo: 'Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e a Potência da morte não terá força contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus; tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.' Pedro, por esta afirmação, recebeu de Jesus, a única autoridade que era reconhecida por todos, a liderança do movimento.
Porém, a leitura do Evangelho de São Marcos, 10:42-45, mostra um Jesus contrário à idéia de autoridade. Marcos conta que Jesus responde aos apóstolos indignados com Tiago e João quando estes lhe haviam pedido para assentar-se respectivamente à sua direita e esquerda na glória: Como sabeis, os que são considerados chefes das nações as mantêm sob seu poder, e os grandes, sob seu domínio. Não deve ser assim entre vós. Pelo contrário, se alguém quer ser grande dentre vós, seja vosso servo, e se alguém quer ser o primeiro entre vós, seja o escravo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate pela multidão. Estas palavras de Jesus denotam que ele não tinha a preocupação em criar uma organização com autoridade e poder na terra, ou no céu.
Como conseqüência de Jesus ter nomeado Pedro o substituto de sua autoridade incontestável, somente ele e seus legítimos sucessores, dali para frente, teriam credibilidade para manter as rédeas da organização que se formava. Esta não poderia ser questionada ou contrariada. Tudo o que ela "ligasse ou desligasse" na terra seria "ligado ou desligado" também no céu.
Os gnósticos contestavam os ortodoxos afirmando que enquanto eles (os ortodoxos) confiavam apenas nos ensinamentos públicos que Cristo oferecia aos "muitos", os gnósticos ofereciam também os ensinamentos secretos conhecidos de alguns poucos.
A teoria de que toda a autoridade provém da experiência de certos apóstolos com o Cristo ressuscitado, "experiência agora definitivamente encerrada" - tem tremendas implicações na estrutura política da comunidade.
O terceiro item da base da estrutura hierárquica, a ressurreição como fato físico, que aconteceu em carne e osso, tem uma função política importante, legitima a autoridade dos sucessores do Apóstolo Pedro. "Do século 2º em diante, essa doutrina serviu para validar a sucessão apostólica dos bispos, que é o fundamento da autoridade papal até os dias de hoje. Os cristãos gnósticos que interpretam a ressurreição de outras maneiras teriam assim menos direito à autoridade; e, quando afirmam prioridade sobre os ortodoxos, são denunciados como hereges."
Tertuliano, um bispo historiador, define a posição ortodoxa: "O que ressuscita é essa carne, regada de sangue, sustentada por ossos, entremeada de nervos, entrelaçada de veias; uma carne que nasceu e que morre, indubitavelmente humana", e acrescenta: "É preciso crer porque é absurdo".
No entanto, para os gnósticos, a ressurreição poderia ser interpretada de diversas maneiras. A primeira delas seria a possibilidade de vivenciar a experiência de Cristo dentro de cada indivíduo, em qualquer momento do presente ou futuro e não um fato que aconteceu e não mais se repetirá. A ressurreição, para os gnósticos, não era um acontecimento do passado. Ela simbolizava a maneira que a presença de Cristo poderia ser vivenciada a qualquer momento. Alguns gnósticos consideravam a idéia da ressurreição da carne, numa interpretação literal, "extremamente repulsiva, repugnante e impossível" e para outros, essa interpretação da ressurreição era considerada "a fé dos tolos". Acreditavam que isto se devia à falta de compreensão do significado de uma verdade espiritual, que era uma confusão com um fato real.
Para eles, o não ter convivido com Cristo podia transformar-se em vantagem pois a pessoa, impossibilitada de encontrá-lo fisicamente, poderia experienciá-lo internamente, da mesma maneira que Paulo encontrou Cristo no caminho de Damasco: uma vivência interior. "O que importa não é ver literalmente, mas sim a visão espiritual."
Outra interpretação dos gnósticos era que as aparições de Cristo, após a sua morte, seriam visões recebidas em êxtase ou em sonhos ou em momentos de iluminação espiritual. E as visões, para os gnósticos, não eram consideradas fantasias ou alucinações mas sim a maneira pela qual a "intuição espiritual revela a natureza da realidade".
Pagels conta que uma carta encontrada em Nag Hammadi, de autor desconhecido, Tratado Sobre a Ressurreição, escrita ao discípulo de nome Rheginos, diz: "Não suponha que a ressurreição seja uma aparição. Não é uma aparição, e sim algo real. Deveríamos, ao invés, sustentar que o mundo é uma aparição e não a ressurreição". Prossegue em outro trecho da carta: "A existência humana comum é morte espiritual, mas a ressurreição é o momento de iluminação. É a revelação do que verdadeiramente existe, e uma migração em algo novo. Aquele que compreender torna-se espiritualmente vivo. Podemos ressuscitar dentre os mortos. Será você mera corrupção? Examine-se a si mesmo, e verá que já ressuscitou".
Outro texto de Nag Hammadi, O Evangelho de Felipe, ensina: "Aqueles que afirmam que primeiro haverão de morrer para depois ressuscitar incorrem em erro. Seria preciso receber a ressurreição enquanto vivem. É necessário ressuscitar nesta carne, pois tudo existe nela".
Pagels declara em Os Evangelhos Gnósticos que Irineu afirma que a prova da validade dos evangelhos é o fato de terem sido escritos pelos próprios discípulos e seguidores de Jesus que testemunharam o que escreveram. Hoje alguns estudiosos da Bíblia contestam esta afirmação. Da mesma forma, os autores gnósticos atribuíam os seus escritos secretos a diversos discípulos. Alguns podem até ter recebido parte do material de antigas tradições, mas alguns admitem que obtinham a gnose através de sua própria experiência.
Pela maneira que os cristãos gnósticos interpretavam a ressurreição, essa autoridade seria esvaziada e quando faziam tal interpretação, eram acusados de hereges. Há que se salientar que os gnósticos tinham consciência do aspecto político da questão.